Por João Victor Guedes Santos
Mais de uma década
transcorreu desde o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade
(ADI) nº 2.588 no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a tributação
imediata, ao final do ano-calendário, de lucros auferidos por meio de
controladas e coligadas estrangeiras, independentemente da sua efetiva
distribuição à controladora ou coligada brasileira. Porém, ainda não
existe decisão final sobre o tema.
Quer dizer, os votos de todos os dez ministros designados para a
análise da matéria já foram proferidos - o ministro Gilmar Mendes
declarou-se impedido e não votou -, mas o Supremo não conseguiu alcançar
um resultado definitivo para as diversas possibilidades envolvidas.
Definiu-se que a tributação de lucros não disponibilizados é
inconstitucional se provenientes de coligadas domiciliadas em países de
tributação normal (isto é, fora de paraísos fiscais) e constitucional se
oriundos de controladas em paraísos fiscais. Contudo, a situação ainda
resta indefinida quanto a coligadas em paraísos fiscais e a controladas
em países de tributação normal.
Embora o recente desenrolar do julgamento possa indicar que disputas
bilionárias estão próximas de um fim, quer nos parecer, paradoxalmente,
que outras discussões envolvendo o tema ainda postergarão por duradouros
anos a definição de muitos dos litígios. Os votos proferidos na ADI nº
2.588 indicam a tendência de confirmação da constitucionalidade da
tributação imediata de lucros estrangeiros auferidos por meio de
controladas em país de tributação normal - e isto apenas poderá se
modificar caso a composição atual do STF reanalise a mesma matéria.
Aumentando a insegurança jurídica dos investidores nacionais, a Receita Federal insiste em ignorar os tratados
Ocorre que muitos dos investimentos no exterior são feitos por meio
de controladas localizadas em países com os quais o Brasil firmou
tratados contra a dupla tributação, que constituem instrumentos
bilaterais que, numa análise estritamente técnica, impedem a aplicação
desse mecanismo de transparência fiscal exigido pela legislação
brasileira. A despeito de os tribunais administrativos e o Judiciário
estarem sendo constantemente provocados a analisar o tema à luz dos
tratados, o STF ainda não se debruçou sobre a questão.
O Brasil atualmente possui 29 tratados contra a bitributação firmados
com muitos dos seus mais relevantes parceiros comerciais. Embora todos
os tratados impeçam o Brasil de tributar os lucros de entidade
estrangeira, as autoridades fiscais têm por praxe autuar as pessoas
jurídicas sob a alegação de que a tributação recairia sobre a
controladora ou coligada brasileira, em relação a "dividendos fictamente
distribuídos". Que a tributação alcança a entidade brasileira não há
dúvida - mesmo porque é ela a autuada -, o que se contesta é que o
tratado permitiria tributar dividendo ainda inexistente, cuja
distribuição sequer foi deliberada pela subsidiária estrangeira.
Nas histórias em quadrinho, atribuía-se à kryptonita o poder de
enfraquecer o Super-Homem, deixando-o vulnerável. Trata-se de mineral
que retirava do conhecido super-herói os poderes necessários para
combater malfeitores. Considerados verdadeiros vilões pela Receita
Federal, os contribuintes tinham a favor de si algo tão forte quanto a
kryptonita: o Tratado Brasil-Dinamarca, expressamente dispondo que os
lucros não distribuídos por sociedade anônima dinamarquesa detida por
sociedade brasileira não seriam tributáveis no Brasil. Regra tão clara e
expressa que nem mesmo o Fisco poderia ousar contestar.
Os contribuintes pensaram, então, estarem resolvidos os seus
problemas: sociedade holding dinamarquesa detendo subsidiárias
operacionais estrangeiras impediria a tributação dos lucros auferidos no
exterior, antes da efetiva distribuição de dividendos à entidade
brasileira. Mas a realidade é bem diferente das histórias em quadrinhos.
Enquanto que o Super-Homem tinha de aceitar os destinos traçados pelos
autores Joe Shuster e Jerry Siegel - que inclusive retiram-lhe os
poderes quando diante da kryptonita -, na prática fiscal a Receita
Federal atua como personagem e autora ao mesmo tempo, sempre tornando
seus poderes cada vez mais ilimitados. Participou ativamente da
renegociação do Tratado Brasil-Dinamarca de modo a retirar a mencionada
kryptonita de seu texto, em contrapartida fazendo importantes concessões
ao governo dinamarquês, tudo em prol da arrecadação. O fim da
kryptonita fiscal ainda depende de aprovação parlamentar no Brasil.
Para alento dos contribuintes, alguns tratados firmados pelo Brasil
(por coincidência, com países cujo nome em português começa com vogal -
Argentina, Áustria, Equador, Espanha e Índia), ainda que não contenham a
mesma previsão do tratado com a Dinamarca, em regra impossibilitam a
tributação sobre sociedades brasileiras em relação a dividendos
provenientes de controladas e coligadas domiciliadas em tais países.
Seja por razões de sinergia operacional ou de otimização fiscal (ou
ambas), holdings foram criadas em algumas dessas jurisdições para
concentrar investimentos operacionais brasileiros detidos em terceiros
países.
E os tratados, vêm sendo respeitados? Aumentando a insegurança
jurídica dos investidores nacionais, a Receita Federal insiste em
ignorá-los. Alega-se que se os dividendos (fictos ou efetivos) não foram
tributados no país de origem, poderá haver imposição fiscal no Brasil a
despeito de o tratado dispor de modo diverso, ou mesmo que as
sociedades holdings devem possuir estrutura operacional substancial no
país estrangeiro, como se a atividade de concentrar participações
societárias exigisse instalações físicas relevantes. Criou-se
interpretação que assusta até mesmo os Fiscos de outros países, por mais
criativos que sejam alguns deles.
Constata-se que diversos desafios apresentam-se ao STF em relação à
tributação dos lucros auferidos no exterior por meio de controladas e
coligadas estrangeiras. Em primeiro lugar, esforços adicionais devem ser
empregados visando a uma decisão definitiva sobre as exatas situações
em que os lucros estrangeiros não disponibilizados podem ser tributados
no Brasil. Resolvida esta questão, torna-se necessário que os ministros
debrucem-se - oxalá sem tamanha delonga - sobre a interação entre lei
interna e tratados contra a dupla tributação, afastando por completo a
insegurança jurídica diuturnamente instaurada pelo Fisco federal.
João Victor Guedes Santos é mestre em direito econômico,
financeiro e tributário pela USP, bacharel em administração pela
EAESP/FGV e advogado associado de LO Baptista - SVMFA Advogados
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